XXXVII. Diversidade microbiana nos lagos subglaciais da Antártida

XXXVII. Diversidade microbiana nos lagos subglaciais da Antártida

Os lagos subglaciais são porções de água que ficam abaixo de uma superfície congelada. Foram avistados pela primeira vez em meados de 1969, mas o primeiro relato oficial foi feito apenas em 1973. A partir daí, a exploração dos lagos foi sendo cada vez mais visada por todos os países, e até maio de 2020 já havia cerca de 400 lagos subglaciais registrados na Antártida. Existem diferentes tipos de lagos subglaciais, alguns ficam em vales - nos quais acredita-se que a água não tem contato com o exterior - e outros não são tão profundos e é possível que tenham contato com outros lagos ou até com a água do oceano. A localização de alguns deles pode ser observada na figura 1.

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Figura 1. Localização dos lagos subglaciais da Antártida. As cores e formas se referem ao tipo de investigação realizada em cada local. Triângulo preto: sistema de sondagem por rádio; triângulo amarelo: sondagem sísmica; círculo vermelho: medição de mudança de altura de superfície. Adaptado de SIEGERT et al. (2016).

A temperatura da água se encontra frequentemente abaixo de zero, mas permanece em estado líquido por causa da alta pressão e salinidade. A dinâmica desses lagos está sendo estudada, e até agora se sabe que, em alguns desses lagos, o gelo acrescido (Figura 2) tende a congelar e descongelar constantemente, causando a movimentação da água. Essa movimentação causaria um fluxo de sedimentos, permitindo a existência de vida.

Por outro lado, diferentemente do descrito acima, alguns lagos, como o Vostok, permanecem cobertos por gelo e isolados da atmosfera há milhares ou até milhões de anos. Leitchenkov (2016) investigou a geologia do lago Vostok e concluiu, em seu trabalho, que a fina camada de sedimentos presente nesse local teria sido depositada durante as condições glaciais temperadas correspondentes ao Mioceno Médio (cerca de 43 - 14 Ma). Essa conclusão partiu das inclusões minerais encontradas nos núcleos do gelo acumulado e, caso esteja correta, os organismos existentes estariam isolados da atmosfera há milhões de anos, não tendo sido expostos às mudanças ambientais e das eras glaciais, podendo assim ser uma representação da vida que existiu há cerca de 14 milhões de anos.

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Figura 2. Formação do Lago Vostok: gelo glacial, gelo acrescido (resultante do ciclo de degelo e recongelamento da camada líquida inferior), região líquida e sedimentos abaixo (Christner, 2001).

Diversos países interessados no estudo desses locais começaram uma corrida para perfurar o gelo e estudar sua água líquida, mas há diversos riscos envolvidos nessa perfuração. Além do risco de contaminação do corpo d'água com organismos de fora, a grande porção de gelo acima do lago torna difícil retirar a amostra sem que ela congele no caminho. Em 2012, por exemplo, a Rússia conseguiu realizar a primeira perfuração no lago Vostok, porém a amostra congelou no caminho de volta e ficou presa. No procedimento de retirada da amostra houve contaminação. Eles analisaram essas amostras em 2016 e encontraram 49 táxons microbianos. Porém, por conta da contaminação, assumiu-se que apenas dois teriam vindos do lago. Um deles não apresentou similaridade com nenhum táxon conhecido e o outro mostrou ser menos de 80% similar à Janthinobacterium.

A possível existência de comunidades de microrganismos nessas regiões, favorecida pela abundância de água e nutrientes, motivou esforços de exploração internacional do Leste ao Oeste da Antártida. Há pouca informação sobre as condições dos aquíferos subglaciais, mas acredita-se que exista cerca de ∼1029 células microbianas nesse bioma. Felizmente, o progresso recente na exploração subglacial fornece uma oportunidade de examinar diretamente a natureza, a evolução e o papel na reciclagem de nutrientes das comunidades microbianas nos ambientes subglaciais da Antártida.

Análises de água de correntes subglaciais, geleiras e poços de gelo profundos permitiram conhecimento sobre comunidades microbianas subglaciais e foram valiosas para obter dados dessas regiões. Há evidências de que os microrganismos subglaciais obtêm sua energia degradando alguns minerais e influenciam a composição química da água subglacial.

Os microrganismos e a ciclagem de nutrientes

A fotossíntese é a principal fonte de energia para a maioria dos organismos na Terra, mas nos lagos subglaciais, em ausência de luz solar, os microrganismos devem usar energia química para alimentar processos biológicos. O oxigênio dissolvido presente em hidratos gasosos (estruturas semelhantes a gelo que possuem gases) nessas regiões parece ser particularmente importante na produção de energia, pois pode ser utilizado pelos microrganismos para oxidar matéria orgânica e compostos de enxofre. Genes associados a diferentes tipos de fixação de carbono foram encontrados, possivelmente participando de reações de produção de matéria orgânica a partir de minerais (quimiossíntese).

No leito do lago Whillans, os microrganismos prevalentemente encontrados estão relacionados a espécies de Thiobacillus e Sideroxydans. Isso sugere que a produção primária pode depender de compostos de ferro e enxofre liberados e processos microbiológicos que ocorrem nos sedimentos. Existem também evidências de atividade de espécies produtoras e consumidoras de metano, assim como oxidantes de amônia, o que sugere que essas vias também poderiam desempenhar papéis importantes nos ciclos de carbono e nitrogênio sob grandes massas de gelo (Achberger et al., 2016).

Um estudo no lago Vostok determinou que os nutrientes na água são adequados para suportar o crescimento de microrganismos heterotróficos (aqueles que se alimentam de moléculas orgânicas produzidas por outros seres vivos). Os níveis de nitrogênio também podem sustentar ciclagem de nutrientes essenciais nos lagos.

Em estudos do metagenoma (o conjunto dos genes da microbiota) do lago Vostok foram achadas sequências estreitamente relacionadas com bactérias que participam de todas as etapas do ciclo do nitrogênio; fixação de nitrogênio, nitrificação, redução de nitrato, desnitrificação e anammox (processo de oxidação anaeróbia de amônia). As bactérias fixadoras de nitrogênio indicadas pelas sequências de DNA, incluíam espécies dos genêros Azospirillum, Azotobacter, Bacillus, Burkholderia, Cyanobacteria, Frankia, Klebsiella, Rhizobium, Rhodobacter, Rhodopseudomonas e Sinorhizobium. As sequências de bactérias nitrificantes incluíram espécies de Methylococcus, Nitrobacter, Nitrococcus, Notrosococcus e Nitrosomonas. As espécies importantes em outras partes do ciclo do nitrogênio estavam nos gêneros Alkaligenes, Bacillus, Clostridium, Micrococcus, Paracoccus, Proteus, Pseudomonas, Streptomyces e Thiobacter. Várias sequências de Planctomycetes foram as mais próximas das sequências de espécies capazes de processos metabólicos anammox em ambientes marinhos (Figura 3). Além de genes associados a funções principais, foram encontradas sequências de DNA referentes a genes de oxidação e redução do ferro, oxidação do arsenito, redução do arsenato e redução do sulfato.

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Figura 3. Caracterização ecológica baseada no metagenoma dos microrganismos do lago Vostok. Mais de 95% dos táxons identificados por essa técnica são produtores primários (autótrofos), bactérias envolvidas no ciclo do nitrogênio ou decompositores, incluindo bactérias e fungos, e alguns cromalveolatos (caixa verde sombreada). A existência de consumidores secundários (caixas brancas) representaria menos de 5% da riqueza de espécies. A possibilidade da presença de grupos de animais foi sugerida principalmente pela identificação de genes de microrganismos que normalmente são a eles associados e, também, podem refletir contaminação por preservação de material de épocas passadas e/ou por fontes externas ao lago. Fonte: Rogers et al., 2013.

Para saber mais:

BARLETTA, R. E.; PRISCU, J. C.; MADER, H. M.; JONES, W. L.; ROE, C. H. Chemical analysis of ice vein microenvironments: II. Analysis of glacial samples from Greenland and Antarctica. Journal of Glaciology, v.58, n212,p 1109-1118, 2012.

CHRISTINER, B. C.; MOSLEY-THOMPSON,E.; THOMPSON, L. G.; REEVE, J. N., Isolation of bactéria and 16s rDNAs from Lake Vostok acccretion ice, Environmental Microbiology,v.3, p. 570-577, 2001.

GURA, C.; ROGERS, S. O. Metatranscriptomic and Metagenomic Analysis of Biological Diversity in Subglacial Lake Vostok (Antarctica). Biology, v. 9, n. 3, p. 55, 2020.

LEITCHENKOV, G.; ANTONOV,, A.; LUNEOV, P.; LIPENKOV, V. Geology and environments of subglacial Lake Vostok. Philosophical Transactions, v. 374,n. 205, 2016.  

ROGERS, S. O. et al. Ecology of subglacial Lake Vostok (Antarctica), based on metagenomic/metatranscriptomic analyses of accretion ice. Biology, v. 2, n. 2, p. 629-650, 2013.

SIEGERT, M. J. et al. Physical, chemical and biological processes in Lake Vostok and other Antarctic subglacial lakes. Nature, v. 414, n. 6864, p. 603-609, 2001.

SIEGERT, M. J. et al. Antarctic subglacial lake exploration: first results and future plans. Phil. Trans. R. Soc. A., 2016.

TEIXEIRA, L. C. R. S.; PEIXOTO, R. S.; CURY, J. C.; SUL, W. J.; PELLIZARI, V. H.; TIEDJE, J.; ROSADO, A. S. Bacterial diversity in rhizosphere soil from Antarctic vascular plants of Admiralty Bay, maritime Antartica. The ISME journal,v.4,p. 989-1001, 2010.

Sítio internet:

https://www.extremetech.com/extreme/160667-3500-species-discovered-in-lake-vostok-underneath-miles-of-ice-in-conditions-similar-to-jupiters-europa

Autoras:

Ana Carolina de Araújo Butarelli

Diana Carolina Duque Castano

Rebeca Graciela Matheus Lizárraga

Coordenadores:

Vicente Gomes e Amanda Gonçalves Bendia – IOUSP

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