XXXVI. Extremófilos da Antártida

XXXVI. Extremófilos da Antártida

 

Quando pensamos na Antártida, geralmente temos uma visão de um local inóspito e frio. Além das baixas temperaturas, esta região pode apresentar outras características, como a alta sazonalidade do regime de luz, a formação de gelo marinho e meses de escuridão durante o inverno. Ainda, podemos encontrar regiões de vulcanismo com altas temperaturas, e ambientes completamente isolados do mundo exterior, como os lagos subglaciais. E sim, ainda existe vida!

Os extremos de frio, calor, salinidade, pH e de outros vários outros fatores ambientais podem limitar a sobrevivência de muitos organismos. Contudo, alguns microrganismos chamados extremófilos são capazes de não apenas sobreviver, mas prosperar em condições ambientais extremas. Para lidar com o estresse ambiental, desenvolveram mecanismos celulares adaptativos, que são amplamente estudados em pesquisas microbiológicas e astrobiológicas.

A maioria dos microrganismos extremófilos ainda não foi cultivada, pois existe dificuldade em replicar todos os fatores ambientais necessários em laboratório. Assim, as informações mais específicas sobre eles ainda é restrita. Apesar de podermos encontrar alguns eucariotos para representar os extremófilos, são os procariotos (bactérias e arqueias) que compõem a maioria deles. E também é nessa vida microbiana que encontramos os maiores exemplos de organismos capazes de sobreviver aos habitats extremos antárticos.

Vulcanismo e as altas temperaturas

 

Existe atividade vulcânica na Antártida! Um exemplo é a ilha Deception, um vulcão parcialmente submerso que se eleva a 1400m do fundo marinho e é caracterizado pela presença de um grande número de fumarolas, apresentando um gradiente de temperatura pronunciado, com o entorno congelado e áreas de fumarolas que podem chegar a 100ºC (Fig. 1). Nelas, podemos encontrar os termófilos e hipertermófilos, que são os que podem sobreviver em altas temperaturas. O maior desafio para eles é manter a integridade das proteínas (e também de outras biomoléculas). Isso pode ser feito trocando alguns aminoácidos por outros com ligações mais fortes, além do maior conteúdo das bases guanina e citosina no DNA. Proteínas de choque térmico também são importantes para evitar o estresse induzido pelas altas temperaturas.

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Figura 1. (A) Ilha Deception (B) Arqueia hipertermofílica Pyrodictium. Fontes: climainfo.org.br; alchetron.com

 

O maior deserto do mundo

 

Os Vales Secos de McMurdo são uma enorme área sem gelo na Antártida, caracterizados por serem frios (com temperaturas entre -15ºC e -30ºC, em média) e secos (Fig. 2). Durante o período de inverno a região fica em permanente escuridão e as temperaturas podem chegar à -60°C, com ventos de até 100 km/h. A precipitação é muito baixa e ocorre apenas através de neve. Para sobreviver em ambientes com altos níveis de dessecação, os organismos precisam entrar em um estado chamado anidrobiose, onde permanecem com baixa atividade metabólica até surgir novamente a disponibilidade de água.

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Figura 2. (A) Vales secos de Mc Murdo (B) Cyanobacteria do gênero Chroococcidiopsis. Fontes: Shawn Kennedy/Flickr; alchetron.com;

Permafrost e baixas temperaturas

 

O solo permanentemente congelado expõe os seres vivos a baixas temperaturas (abaixo de 0ºC) por tempo prolongado, além da ocorrência de regiões com alta salinidade e baixa disponibilidade de nutrientes (Fig. 3). Além disso, como a formação do permafrost pode ter ocorrido há milhares de anos, é possível encontrar antigas formas de vida microbianas viáveis nesses locais. Os microrganismos que suportam baixas temperaturas são chamados psicrófilos, e uma das estratégias para evitar que a célula congele e mantenha a funcionalidade das biomoléculas é aumentando a concentração de ácidos graxos poliinsaturados para preservar a fluidez da membrana celular.

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Figura 3. (A) Permafrost (B) Flavobacterium frigidarium, bactéria que sobrevive a temperaturas de -5ºC. Fontes: livescience.com; HUMPFRY, 2001

Camada de gelo marinho e a alta salinidade

 

Durante o período de inverno, grande parte do Oceano Antártico congela, e, nesse momento, expele sal que se acumula nos chamados canais de salmoura. Esse processo confere fortes gradientes de salinidade e temperatura nessas estruturas. No período de formação da camada de gelo, a temperatura diminui ainda mais. Para sobreviver nesses locais é necessário que os microrganismos suportem temperaturas abaixo de –20°C. O processo de concentração de sal torna alguns pontos tão salinos que os organismos precisam ser muito resistentes à desidratação. Para manter a osmolaridade (balanço de água e sais) da célula, eles protegem a membrana plasmática por meio de uma composição lipídica diferenciada. Outras adaptações envolvem a “expulsão” de íons do citoplasma e movimentação da água interna da célula (Fig. 4).

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Figura 4. (A) Gelo marinho antártico (B) Halobacterium salinarum. Fontes: HannahZanowski/ University of Washington/Flickr;alchetron.com

 

Lagos Subglaciais

 

Alguns lagos antárticos estão isolados sob uma espessa camada de gelo. O lago Vostok é um dos maiores e mais profundos lagos subglaciais antárticos, encontrado sob uma camada de 3720m de gelo (Fig. 5). A água permanece em estado líquido devido ao aquecimento proveniente do manto do planeta e à pressão que a camada de gelo acima exerce, diminuindo o ponto de fusão da água. Esses ambientes possuem poucos nutrientes, baixo fluxo de energia e estão em permanente escuridão, um refúgio perfeito para os extremófilos.

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Figura 5. Lago Vostok por imagem de satélite. Fontes: Goddard Space Flight Center - NASA

Do continente gelado ao espaço

O estudo de extremófilos antárticos auxilia na elaboração de modelos de vida astrobiológicos, pois é possível comparar algumas das condições desses ambientes com as de outros potenciais habitats do nosso sistema solar, como os satélites gelados Titã, Europa, Enceladus e Calisto.

Os lagos subglaciais, como o Vostok, estão isolados por camadas de gelo parecidas com os mares das luas de Júpiter, apesar de existir uma grande diferença na espessura do gelo sob o qual eles se encontram. A área de deserto antártico também pode ser comparada à superfície de Marte, pois ambas são frias e secas.

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Figura 7: Rover BRUIE (Buoyant Rover for Under-Ice Exploration) que anda sob a camada de gelo para coletar dados, testado na Antártida com foco de uso no satélite Europa. Foto: NASA.

Entender esses microrganismos, principalmente bactérias e arquéias, e seus mecanismos de adaptação, nos permitirá avaliar como a vida poderia prosperar em ambientes extraterrestres, quais as possibilidades de organismos que poderiam ser encontrados lá, e também sobre a própria evolução da vida na Terra. Além disso, possibilitará o desenvolvimento de métodos de coleta de amostras em futuras explorações espaciais, como, por exemplo, ferramentas para penetrar os mares sob camadas de gelo nas luas geladas do nosso Sistema Solar.

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Autores:

Ana Carolina de Oliveira Gusmão

Nailah Ahmed

Coordenadores:

Vicente Gomes e Amanda Gonçalves Bendia - IOUSP

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