XV. Resfriando e congelando para resistir ao frio.

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Nestes últimos artigos vimos que os peixes, por serem animais hipotônicos em relação à água do mar, não acompanham a concentração osmótica do meio onde vivem, tendo por isso implicações relacionadas à resistência ao congelamento de seus fluidos. Vimos, por exemplo, que nestes animais atuam mecanismos bioquímicos e celulares, como a presença de glicoproteínas anticongelantes e o aumento da densidade de mitocôndrias, como formas de adaptação à baixa temperatura.

Entretanto, a maioria dos invertebrados marinhos são animais osmoconformistas, ou seja, a concentração de seus fluidos corpóreos acompanha a da água do mar. Esta característica lhes possibilita o emprego de mecanismos relativamente mais simples do ponto de vista bioenergético, como forma de suportar o frio. É por isso, inclusive, que diversas espécies de crustáceos microscópicos conseguem sobreviver nos canais hipersalinos no interior de blocos de gelo, suportando uma salinidade em torno de 80 e onde as temperaturas certamente são mais baixas do que -2º C. Outros animais ectotérmicos que vivem nas regiões entre marés dos ambientes polares, ou mesmo aqueles que vivem em ambientes de água doce ou terrestre de clima temperado, podem experimentar temperaturas tão baixas quanto -30º C ou -40º C, ou ainda mais baixas do que isso. Geralmente, estes animais possuem hábitos sedentários ou com pouca mobilidade e são incapazes, portanto, de evitarem o congelamento deslocando-se para locais menos frios.

Evitar ou tolerar o congelamento de fluídos corpóreos são duas estratégias básicas destes animais para resistirem ao frio. Animais ectotérmicos marinhos que evitam o congelamento podem ter seus corpos super-resfriados a temperaturas próximas de -30º C, bem abaixo do ponto de congelamento da água. No super-resfriamento, os animais evitam processos que são necessários para dar início ao congelamento de líquidos, em geral e, portanto, de seus fluídos corpóreos. Entre esses processos, chamados de inoculadores, podemos citar o contato com superfícies externas congeladas (gelo) e a presença de partículas diversas tais como de alimento, proteínas e lipoproteínas que são comumente encontradas na circulação e nos líquidos celulares. Os organismos em estado de super-resfriamento evitam o contato com superfícies frias e possuem mecanismos para remover as partículas com função inoculadora. Evitar o congelamento envolve, também, o processo de hibernação, com a escolha de um local adequado que evite a ação de agentes inoculadores do congelamento.

Outros animais ectotérmicos são capazes de tolerar o congelamento de parte de seus fluídos corpóreos, o que os habilita enfrentar temperaturas mais baixas do que -40º C, que podem ocorrer no inverno antártico em regiões entre marés, durante a baixa mar, quando os animais ficam expostos às temperaturas da atmosfera. Nestes animais ocorre a formação de gelo nos fluídos corpóreos extracelulares com a drenagem de parte da água que está dentro da célula. Dessa forma, a água disponível em estado líquido no interior das células é diminuída, o que leva a um aumento da concentração de solutos e, consequentemente, o abaixamento do ponto de congelamento de sua parte interna. A célula, por assim dizer, “murcha” e fica rodeada por gelo. Se o gelo se formasse no interior das células estas correriam o sério risco de estourar e morrer. Além disso, tal como nos animais que super-resfriam, há também nestes casos a produção de compostos de baixo preso molecular, como carboidratos e glicerol, de natureza crioprotetora, que ajudam a prevenir danos nas estruturas celulares.

Embora notáveis nos invertebrados, ambos os processos, super-resfriamento e tolerância ao congelamento também ocorrem em vertebrados ectotérmicos, a exemplo de alguns peixes e, mesmo em animais terrestres de regiões temperadas, cujas temperaturas de inverno certamente são ainda mais baixas do que aquelas das águas marinhas polares. Tal fato evidencia a existência de processos de evolução convergente, ou seja, aqueles em que animais filogeneticamente distintos encontraram mecanismos adaptativos similares, em ambientes diferentes, porém, com restrições de fatores semelhantes.

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Figura 1 – Animais associados ao gelo âncora (congelamento do fundo, característico de regiões costeiras rasas). Fotógrafo: Norbert Wu/ Minden Pictures/National Geographic Creative. Mais fotos em: http://norb.homedns.org/nwp/misc_stuff/uai_exhibit/gallery-01.html

Leituras sugeridas:
Aarset, A.V. 1982. Freezing intolerance in intertidal invertebrates: a review. Comp. Biochem. Physiol. 73A(4): 571-580.
Ansart, A.; Vernon, P. 2003. Cold hardiness in molluscs. Acta Oecologica. 24: 95-102.
Schmidt-Nielsen, K. 2002. Fisiologia animal: adaptação e meio ambiente. 5ed. Livraria Santos Editora Com. Imp. Ltda. São Paulo. 611p.

 

Autores: Arthur José da Silva Rocha; Maria José de A. C. R. Passos; Prof. Dr. Phan Van Ngan
Coordenador: Prof. Dr. Vicente Gomes

 

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