XIII. O peixe-gelo da Antártida

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Os organismos aeróbios utilizam oxigênio para a combustão controlada do alimento, a fim de obterem energia para os processos vitais. Como o oxigênio se difunde lentamente nos líquidos, principalmente se forem viscosos, os animais desenvolveram sistemas circulatórios e moléculas de transporte de gases para facilitar a captação e distribuição do gás. Todos os vertebrados possuem um sistema de vasos e capilares que levam o sangue para todos os tecidos do corpo. No sangue, os glóbulos vermelhos, ou eritrócitos, possuem moléculas proteicas denominadas de hemoglobina que conseguem carregar e descarregar o oxigênio de forma rápida e eficiente aonde ele é necessário.

Entretanto, em 1954, um pesquisador da Universidade de Oslo, Johan T. Ruud, descreveu na revista Nature, pela primeira vez, um peixe praticamente sem eritrócitos e sem hemoglobina. Já se sabia desde a segunda década do século XX que esses peixes, chamados em inglês de icefish da Antártida (Fig. 1), não tinham sangue vermelho, mas ninguém ainda havia estudado o fenômeno com mais detalhes. No Oceano Antártico há cerca de 25 espécies de peixes-gelo pertencentes à família Channichthyidae, que não possuem eritrócitos, hemoglobina e nem mioglobina, que é a hemoglobina presente nos músculos. Por isso, o sangue é amarelado transparente, as brânquias são creme pálido e a carne é extremamente branca. Eles são peixes relativamente grandes atingindo, quando adultos, em torno de 25 a 75 cm. Chega a ser espantoso que um vertebrado desse porte possa levar uma vida “normal”, com todos os gastos que ela implica, sem os mecanismos considerados básicos para o transporte de oxigênio.

A vantagem de não ter eritrócitos e pigmentos respiratórios, se é que existe alguma, seria principalmente a de economizar energia para a construção dessas estruturas e moléculas. Nos mares antárticos, como vimos em outros artigos desta série, a produção de alimento sazonal parece ter resultado em diversas adaptações evolutivas no sentido da economia de energia, para enfrentar os períodos de relativa escassez de recursos alimentares. Apesar dessa aparente economia, sabe-se que o transporte de oxigênio dissolvido no plasma é cerca de 90% menos eficiente do que o realizado por pigmentos respiratórios.

Como os peixes-gelo fazem, então, para evitar o problema da hipóxia tecidual, ou seja, da falta de oxigênio nos tecidos? As maneiras de contornar esse problema constituem uma interessante questão biológica. Em primeiro lugar, as águas antárticas são frias e nelas a quantidade de oxigênio dissolvido pode ser maior do que em águas tropicais. Por exemplo, na água do mar a 30ºC, a saturação do gás é de 4,6 mg/l enquanto que a 0 oC ela é de 8,0 mg/l. A maior disponibilidade já seria um ponto positivo para facilitar a absorção e difusão do oxigênio. Além disso, os peixes-gelo, apesar de nadarem bem, possuem um metabolismo baixo e são bastante tranquilos e, por isso, gastam muito menos oxigênio do que um animal ativo.

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Figura 1. Peixe-gelo da espécie Chionodraco hamatus (Lönnberg,1905) - http://en.wikipedia.org/wiki/Channichthyidae

O oxigênio pode ser parcialmente absorvido pela pele, que no caso dos peixes-gelo é bem vascularizada e sem escamas, mas esse processo parece representar apenas uma pequena fração do total que eles necessitam. Eles são também conhecidos como peixes-crocodilo devido a sua boca grande, que permite a passagem de uma grande quantidade de água que pode ser dirigida para as brânquias. Estas, por sua vez, estão abrigadas em cavidades operculares também avantajadas, por onde pode passar um volume de água maior; os próprios filamentos branquiais são grandes, numerosos e finos, o que aumenta a área para trocas gasosas. O volume sanguíneo dos peixes-gelo é também varias vezes superior ao comum para peixes de seu porte. Como não ha glóbulos vermelhos, o volume aumentado não implica em aumento da viscosidade, que dificultaria a circulação. O sistema circulatório desses animais também é especial.

Existe grande número de capilares que regam os tecidos, com epitélio fino, mas de calibre mais grosso. Essas características juntamente com um coração grande e potente permitem que haja um fluxo sanguíneo abundante e rápido. Segundo alguns autores, a ausência de hemoglobina e de eritrócitos nesses peixes não é uma adaptação no sentido tradicional do termo pois, para compensá-la, eles tiveram que desenvolver outros mecanismos, tais como os relatados acima, que acabam por gastar tanto ou mais energia do que a que eles economizam por serem “especiais”. De fato, essa perda seria como uma espécie de doença genética à qual os indivíduos dessas espécies sobreviveram por não ser letal em águas antárticas, devido às suas características físico-químicas e também ecológicas, como a falta de competidores. Seja como for, os peixes-gelo tiveram sucesso em águas antárticas e fazem parte da fauna ictíica há bastante tempo, provavelmente por cerca de seis milhões de anos. O único problema que eles vêm enfrentando é a pesca intensiva a que foram submetidos em algumas áreas marinhas, como as ilhas Georgia do Sul.

Devido a isso, as populações declinaram e ainda parecem estar em fase de recuperação. O aquecimento global também pode ser uma forte ameaça a esses animais adaptados a condições específicas e estáveis. Os estudos a respeito são relativamente escassos e precisam ser aprofundados.


Leituras sugeridas

Kock, K-H. 2005. Antarctic icefish (Channichthyidae): a unique family of fishes. A review, Part II. Polar Biol., 28:897-909.
Ruud, J.T. 1954. Vertebrates without erythrocytes and blood pigment. Nature, 173: 848.
Verde, C.; Giordano, D.; Russo, R.; Riccio, A.; Coppola, D.; di Prisco, G. 2011. Evolutionary adaptations in antarctic fish: the oxygen-transport system. Oecologia Australis, 15:40-50.

Artigos na internet:

http://blogs.scientificamerican.com/brainwaves/2012/08/03/how-the-antarctic-icefish-lost-its-red-blood-cells-but-survived-anyway/

http://en.wikipedia.org/wiki/Channichthyidae

 

Autores: Arthur José da Silva Rocha; Maria José de A. C. R. Passos; Gabriel Monteiro; Prof. Dr. Phan Van Ngan
Coordenador: Prof. Dr. Vicente Gomes

 

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