Yara Schaeffer-Novelli, a grande mãe dos manguezais brasileiros - ((o))eco

Fonte: O eco

A ciência brasileira sabia muito pouco sobre manguezais quando Yara Schaeffer-Novelli decidiu se debruçar sobre o assunto em 1976. E ela nunca mais parou de pesquisá-los

  

yara

 

“Natureza não era mato, natureza era onde eu estava”. A fala, entre muitas outras que ouvimos nos três dias que passamos com a professora Yara Schaeffer-Novelli, remete a um tipo de ciência com poesia, com uma beleza e riqueza que traduz exatamente o que tínhamos diante dos olhos.

Chegamos a um lugar simbólico e histórico para a ciência marinha no Brasil, com uma profusão da natureza. Nossa viagem nesta etapa do Projeto Mulheres na Conservação é pelo extremo litoral sul de São Paulo. Viajamos até o estuário de Cananéia, local central de um caldeirão de vida marinha, que possui grandes extensões de manguezais, dois parques estaduais – do Cardoso e do Lagamar –, além da Reserva Extrativista do Mandira. Percorreríamos alguns caminhos ouvindo as histórias de uma das maiores referências no estudo de manguezais no Brasil e no Mundo.

A escolha de Cananéia não foi por acaso: foi nesta região que Yara começou a desenvolver seus estudos pioneiros, há mais de quatro décadas, abrindo pesquisas e contribuindo de forma fundamental para quase tudo o que conhecemos hoje sobre os manguezais. Seu nome está em boa parte das principais divulgações científicas já produzidas e dos seus alunos e alunas também. Fazendo uma analogia com o ambiente, ela é como uma árvore mãe do mangue, onde a partir dela se espalharam e fixaram no solo lodoso outros propágulos (sementes), criando um ambiente onde se alimentam diversas espécies.

Não à toa, é considerada a matriarca dos manguezais brasileiros no meio acadêmico e fora dele.

 

 

Formada em História Natural, Yara, hoje com 80 anos, é professora sênior do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, que possui base de pesquisa em Cananéia, São Paulo.

Yara também é cofundadora e diretora do Instituto Bioma Brasil, uma organização criada em 2006, para trabalhar na conservação dos manguezais e demais ecossistemas costeiros.

Foto: João Marcos Rosa

No dia seguinte à nossa chegada, bem cedo e com um calor já exaustivo, traçamos nossas rotas não pelas estradas, mas sim pelos braços de rios, entre ilhas, no “mar de dentro” do complexo estuarino.

Nossa ideia era ver a dinâmica dos manguezais. Desde áreas que morreram até novas áreas que surgiram, além de baias, guarás voando, áreas de descanso, cercos de pesca e sambaquis. Em detalhes, Yara nos aponta no mapa os caminhos que faríamos. Já nas primeiras horas em campo e na água, me impressiona a riqueza de detalhes que ela resgata. São lembranças e referências de uma pessoa que percorreu estas águas há mais de quatro décadas, permanecendo por longos períodos observando, contemplando, conversando com pescadores e transformando estas vivências em dados e metodologias de estudos iniciais sobre a dinâmica dos manguezais. Metodologia que depois seria replicada em outras regiões do Brasil onde existe este ecossistema. Ou seja, em boa parte do litoral do país.

Yara possui uma memória pródiga, que nos leva a histórias de infância e sua relação profunda com o mar. “A natureza era o pano de fundo da minha família”, conta, fazendo alusão aos avós paternos e maternos muito conectados ao mundo natural.

Com o pai químico e a mãe criada entre Capitanias de Portos, pois o avô era comandante da Marinha, podemos pensar que Yara, cujo nome de origem tupi significa Mãe das Águas, já teria seu destino regado a água e sal desde que nasceu. “Andei de barco até os 18 anos mais do que em terra… Praias, ilhas, barcos, velejar… eram parte da minha vida!”. Em meio a risadas, Yara conta que seu nome veio de uma ideia fixa que o pai tinha para o nome de um barco. Como já existia uma embarcação Yara, o nome foi para a filha.

Aos quatro anos, já remava em seu próprio caiaque e foi nessa infância embarcada onde adquiriu o “fundamento da vida no mar”.

 

Yara em seu habitat natural. Fotos: João Marcos Rosa
 

Saímos às 9h, a partir de Cananéia no sentido Barra Nova. No caminho a bordo da voadeira, Yara contava com empolgação sobre a infinidade de dados e diferentes olhares para a dinâmica do manguezal que ela desenvolveu ao longo dos anos, como o estudo das folhas de manguezais para entender sobre a produtividade primária, e sobre a matéria orgânica que vai para água. E como se desenvolvem fungos e se estes, por sua vez, podem servir de comida para outras espécies.

“Quando se visita sempre, conseguimos acompanhar a história da vida”, nos resume. E segue explicando sobre a origem do mundo natural como a conhecemos e a antiguidade dos manguezais e como foram se espalhando. Ouvi-la falar, com o tom de empolgação e a didática de uma experiente e apaixonada professora, é comovente. Cada explicação vem acompanhada de uma sonora e contagiante gargalhada.

 

Uma linha do tempo na história do Planeta

“Tudo é uma ciência. E você deve dar o ar de uma ciência quando você começa a estudar um novo ambiente. As plantas, as árvores típicas do manguezal têm cerca de 60 milhões de anos e vêm ocupando áreas lodosas. Nas regiões estuarinas, veja quantas áreas que já foram estuários, já foram colonizadas por essas plantas típicas de mangue. E eles vêm com habilidade incrível, sempre encontrando um lugar para continuar colonizando, se desenvolvendo”, ensina a naturalista.  

Ao longo da costa brasileira, com oito mil quilômetros, temos incidência de manguezal até Laguna, em Santa Catarina. Mas não é uma linha contínua e cada manguezal é um manguezal, não existem dois iguais. “É uma impressão digital de cada manguezal. Cada linha de uma impressão digital conta quanto ele recebe de água doce. Quantos dias e quantas horas de sol, amplitude de maré, nutrientes… a água doce que vem por um caminho de rio originado de um vulcão ou vem de uma planície arenosa costeira pobre em nutrientes? Esse é o digital do dedão do manguezal”, exemplifica Yara.

 

Mangue preservado atrai a presença de guará (à direita), ave símbolo deste tipo de ecossistema. Fotos: João Marcos Rosa
 

A origem da vida, o passado natural e a diversidade de espécies seguiram rondando o assunto a bordo até chegarmos numa área que Yara tinha indicado para desembarcar. Duas áreas de sambaquis bem preservados, bem próximo à margem. Estes amontoados de conchas e moluscos foram depositados ao longo do tempo por populações antigas da costa brasileira, e nesta região do extremo litoral sul de São Paulo podem datar de oito mil anos.

Recolhendo algumas conchas, a pesquisadora conta que antes dos manguezais entrarem em sua vida, na primeira metade dos anos 1970, ela se dedicava a estudar estes animais.  

“Tinha terminado o meu doutorado com vôngoles [um molusco marinho, menor que o mexilhão] em praia arenosa. Mas levei dois anos fazendo tanto trabalho de medida desses mariscos, que quando eu terminei, tinham construído uma marina nessa praia. Pensei que precisava, dentro de um Instituto Oceanográfico, trabalhar em algo que a devolutiva fosse mais rápida. Havia uma ansiedade por conhecer as praias, por conhecer o mar”, lembra.

E foi em 1976, durante um Simpósio de Oceanografia Biológica, em El Salvador, que ela encontrou caminhos para essa vontade, conhecendo estudos desenvolvidos em outros países com manguezais.

No retorno ao Brasil, e considerando que já não teria tempo suficiente para mapear todos os manguezais brasileiros, priorizou o que sabia fazer: coletar dados e transformar isso em método.

“Pensei que podia cooperar ensinando metodologia de trabalho. Eu sempre fui muito fixada nessa parte de testar. Precisava fazer vários testes para saber se estava funcionando e o meu teste é ver métodos. Criei uma disciplina de pós-graduação no Instituto Oceanográfico e a ministro até hoje.”

Seguimos navegando. No horizonte, à nossa esquerda, a grande Ilha do Cardoso. Nós nos aproximamos de uma das margens, pois ao longe já se via uma das espécies símbolo de um manguezal bem conservado: guarás, no seu vermelho intenso, que já se acomodavam em alguns galhos.

Ficamos o fim da manhã admirando aquele espetáculo antes de nos dirigirmos até a Barra Nova, onde ocorre o encontro com o mar. Há poucos anos, em um processo erosivo natural, o mar soterrou um braço grande de areia. Este processo também fez com que os manguezais de uma das margens morressem, devido ao excesso de sal na água. Os olhos inquietos da pesquisadora observam tudo. Yara faz comparações mentais com outras paisagens e com os muitos dados acumulados.

Na dinâmica sem fim de uma área estuarina, ao fazer o caminho de retorno à cidade de Cananéia, ainda pudemos contemplar um período de pescaria de botos-cinza, muito comuns no Lagamar.  Pequenos grupos encurralavam peixes na margem e do barco era possível vê-los pescando em uma coordenada ação. Alguns grupos tinham filhotes que estavam aprendendo as técnicas.  

Tudo no manguezal parece e é superlativo. 

Parque Estadual Ilha do Cardoso. Foto: João Marcos Rosa

 

Produzir conhecimento compartilhado 

Na manhã do segundo dia, atravessamos de balsa para Ilha Comprida para conhecer, em campo, alguns equipamentos utilizados pela naturalista para as mais diferentes medições e procura de dados no manguezal. Ela ficava uma semana por mês em busca de informações para criar os métodos. 

Em outro local na Ilha Comprida, chegamos no ponto exato onde, em dezembro de 1978, Yara iniciou os trabalhos de pesquisas, os primeiros levantamentos para criar a metodologia de estudo de manguezais brasileiros: Foi na Praia do Pereirinha, bem em frente à cidade de Cananéia, onde chegamos no fim da tarde. 

“Tínhamos que medir tudo, então depois de algum tempo de projeto, passamos a chamar especialistas em outras áreas, como botânicos, especialistas em taxonomia, que soubessem mexer com imagens de satélite. Um dia mediamos comprimento e largura de folha. Em outro dia fazíamos parcelas. E depois fomos inventando mais coisas”, lembra Yara. Essa rede de informações e pessoas, onde cada conversa amplia o conhecimento, a pesquisadora chama de Ciência do Amor. E de certa forma, talvez seja a metodologia mais replicada pelas centenas de alunos e bolsistas que já passaram pela matriarca dos manguezais: o conhecer mais, conservar e amar. 

Medir, monitorar e capturar dados é preciso. Foto: João Marcos Rosa
 

“Nosso trabalho é produzir conhecimento para que haja conservação daquilo que você conhece. Quanto mais trabalharmos, quanto mais conhecermos, mais podemos compartilhar esse conhecimento e teremos mais gente preparada para conservar.”, diz Yara.

A rede e laços em torno dos trabalhos de campo criados pela pesquisadora ao longo de décadas não se resume só ao mundo acadêmico, mas também incluem e reconhecem o trabalho e conhecimento de caiçaras.

Na visita à base do Instituto Oceanográfico fomos recebidos por Ricardo Denner Pereira, filho de Pércio Pereira, que foi técnico de laboratório e fazia as saídas de campo com Yara nos anos 1970. Antes de partirmos, esta visita ao velho amigo rendeu emocionantes lembranças.

“Conhecer o manguezal não tem fim”, nos diz Yara ao descrever seus momentos de aprendizado nestes ecossistemas. Pela dinâmica das marés, das espécies que nascem nele e que dele dependem, pelo poder de suas raízes e solo em reter o “carbono azul”, pelos nutrientes de suas águas, pela conexão humana, cultural e alimentar, este ecossistema, se mantido vivo, pode trazer muitas chaves e respostas para os desafios que estão por vir.

Futuros

Como o manguezal responderá frente aos desafios das mudanças climáticas é a pergunta que tira o sono de Yara: “Como ele vai responder quando o nível da água subir, quando a temperatura  aumentar, quando a matéria orgânica oxidar mais rápido? O que vai ser das galerias dos caranguejos? O manguezal vai reagir como? Nós ainda não sabemos”, explica.

Neste projeto de documentação da vida de mulheres que se dedicam a proteger, estudar e conservar a natureza do Brasil, acabamos encontrando muitas similaridades na personalidade delas associada com as dinâmicas naturais. E Yara Schaeffer-Novelli, como abrimos na reportagem, é uma espécie generosa de árvore de manguezal, resiliente. 

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