Diagnóstico fechado: prosperidade do Brasil depende de um oceano saudável

Fonte: Jornal da USP

Relatório inédito traz uma síntese do conhecimento científico e tradicional sobre a importância dos ecossistemas costeiros e marinhos para o desenvolvimento sustentável do País

A Ilha dos Alcatrazes, no Litoral Norte de São Paulo, é um dos principais símbolos da biodiversidade e da conservação marinha no Brasil - Foto: Leo Francini

O Brasil é famoso mundialmente pela beleza de suas praias e de suas florestas tropicais. O que muita gente não se dá conta, porém — inclusive dentro do próprio Brasil —, é que o País não acaba em terra firme. Muito além da Amazônia e das praias de areia fofa, emolduradas pelo verde esplendoroso da Mata Atlântica, existe ainda todo um universo de ecossistemas costeiros e marinhos, que também influenciam profundamente a vida no interior do continente. É a chamada “Amazônia Azul”, uma área de 5,7 milhões de quilômetros quadrados (equivalente a dois terços do território continental brasileiro), que pesquisadores descrevem num documento inédito, chamado 1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos

“A prosperidade e a soberania do país e o bem-estar do povo brasileiro dependem direta e indiretamente do oceano e dos benefícios que ele provê”, escrevem os autores, no Sumário para Tomadores de Decisão (STD), um resumo em linguagem simplificada dos principais achados e recomendações do diagnóstico. Esses benefícios incluem o fornecimento de alimento, água, energia, recursos minerais e biotecnológicos, proteção da linha de costa e regulação dos padrões climáticos — que controlam o regime de chuvas e dão sustentação à produção agrícola nacional, entre outras coisas fundamentais.

Produzido em colaboração com representantes de povos indígenas e outras populações historicamente ligadas a esses ecossistemas, o diagnóstico se propõe a fazer uma síntese qualificada do conhecimento — científico e tradicional — disponível sobre os ambientes costeiros e oceânicos do Brasil; com o objetivo de “tirar o oceano da invisibilidade” e colocá-lo no centro da agenda de desenvolvimento econômico, social e ambientalmente sustentável do País.

Números para justificar esse protagonismo não faltam, segundo os pesquisadores. Considerando todas as suas curvas e reentrâncias, o Brasil tem aproximadamente 10 mil quilômetros de linha de costa (equivalente à distância entre São Paulo e Los Angeles, na Califórnia), que abrigam uma grande diversidade de espécies e ecossistemas, incluindo a segunda maior área de manguezais do Planeta. Adjacentes à costa, em ambientes que variam de dezenas a milhares de metros de profundidade, encontram-se os recifes de coral, bancos de algas calcárias, montes submarinos, ilhas oceânicas e outros ecossistemas marinhos, também povoados por uma enorme biodiversidade. Dezessete dos 26 Estados brasileiros estão em contato com o oceano; cerca de 18% da população nacional vive próxima ao litoral; e cerca de 20% do produto interno bruto (PIB) do País provém da zona marinho-costeira, oriundo de atividades como pesca, aquicultura, navegação, mineração e turismo.

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Infográfico do Sumário para Tomadores de Decisão (STD) do 1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, resumindo as dimensões que fazem do Brasil uma “nação oceânica” – Infográfico: Reprodução/BPES

“A economia do mar definitivamente contribui para o bem-estar da nação brasileira e é bastante diversificada”, disse a professora Beatrice Padovani Ferreira, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em uma coletiva de imprensa realizada na manhã de quinta-feira (23/11), para a divulgação do STD. Ela destacou, porém, que esses 20% do PIB são um valor “bastante subestimado”, que não leva em conta uma série de benefícios imateriais — como o bem-estar proporcionado pela beleza cênica, o lazer e a relação espiritual que muitas pessoas têm com o oceano —, nem serviços ambientais importantes, como a proteção da costa e a regulação climática, que têm um valor imenso, mas são extremamente difíceis de se quantificar do ponto de vista monetário. “Então, o valor (real) é muito maior do que esse cálculo”, finalizou a professora.

Comparativamente, o agronegócio contribui com 24% do PIB nacional. “Só que, para ter agro, você precisa ter chuva. E a chuva começa no mar, não é mesmo?”, disse o professor Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, que coordenou a elaboração do diagnóstico, em parceria com Ferreira e Cristiana Seixas, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ao todo, 53 especialistas acadêmicos e governamentais participaram da elaboração do relatório, além de 12 jovens pesquisadores e 26 representantes de povos indígenas e populações tradicionais. A versão completa do diagnóstico, organizada em seis capítulos, deve ser publicada em junho de 2024 — por enquanto, apenas o Sumário para Tomadores de Decisão foi divulgado. O trabalho é fruto de uma parceria da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES, na sigla em inglês) com a Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano, sediada na USP e coordenada pelo professor Turra.

Cristiana Seixas, da Unicamp, destacou que o termo “tomadores de decisão” vale para toda a sociedade, e não apenas para a classe política. “Tomadores de decisão somos todos nós”, disse. “A gente não muda uma cultura, não muda um paradigma operante, se não tiver uma força social que pressione. (…) Então eu acho que a gente tem que expandir esse nosso conceito de ‘tomador de decisão’, e cada um assumir a sua responsabilidade.”

Barcos de pesca no estuário de Cananeia, Litoral Sul de São Paulo, onde a proteção dos ecossistemas marinhos e costeiros é vital para a sustentabilidade socioeconômica da região – Foto: Herton Escobar / USP Imagens

Lacunas

Uma das principais contribuições do documento, segundo Turra, está na identificação de lacunas que precisam ser preenchidas para promover o conhecimento e o uso sustentável do oceano. Entre elas, está “uma grande lacuna de implementação de políticas públicas que já existem”, mas não são colocadas em prática de maneira efetiva, segundo o pesquisador.


“Esse é o primeiro recado: a gente tem que implementar políticas públicas”, afirmou Turra, na entrevista coletiva. Algumas novas leis são de fato necessárias, segundo ele — por exemplo, a chamada Lei do Mar (PL 6969/2013), que propõe a criação de uma Política Nacional para a Conservação e o Uso Sustentável do Bioma Marinho Brasileiro (PNCMar), em tramitação no Congresso há quase uma década —, “mas o grande aspecto que a gente precisa cobrir é a lacuna de implementação”. “Para isso acontecer, a gente precisa trabalhar no sentido de integrar essa tomada de decisão com os diferentes atores da sociedade”, completou Turra.

Outra lacuna gigantesca, segundo os pesquisadores, é a falta de estatísticas de pesca no Brasil. Desde 2008 não há coleta de dados oficiais sobre atividades pesqueiras no País; o que significa que ninguém sabe, exatamente, o que se pesca, quanto se pesca, como se pesca ou onde se pesca em águas brasileiras. “Realmente, é uma crise total”, disse Padovani. Segundo ela, é “impensável” que um país com o tamanho e as características do Brasil não tenha informações sobre as atividades pesqueiras que são praticadas em seu território. “O que a gente vê é um cenário no qual a gente vai ter que fazer um esforço tremendo para retomar de onde paramos e chegar a conclusões sobre esses recursos”, disse.

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Infográfico do Sumário para Tomadores de Decisão (STD) do 1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, resumindo os benefícios da zona marinho-costeira para o Brasil – Infográfico: Reprodução/BPES

Com base nas poucas estatísticas disponíveis, segundo o diagnóstico, estima-se que mais de 50% do pescado nacional é proveniente da pesca artesanal, que emprega 25 vezes mais pescadores e gasta apenas 12,5% da quantidade de combustível utilizada pela pesca industrial. O País tem cerca de 1 milhão de pescadores profissionais, e a média anual de captura de pescado marinho gira em torno de 500 mil toneladas.

O descontrole da pesca é uma das principais ameaças à biodiversidade marinha, que está na base de praticamente todos os serviços ecossistêmicos prestados ao homem pelo oceano.A fauna marinha brasileira inclui milhares de espécies oceânicas e costeiras, incluindo mais de 1.300 tipos de peixes, 51 espécies de mamíferos e mais de 1.700 espécies de crustáceos. Segundo os dados disponíveis, 160 espécies dessa fauna marinha estão ameaçadas de extinção e 118 são recursos pesqueiros — ou seja, animais que são alvo de pesca ou de coleta extrativista.

A situação, que já é grave, tende a piorar nas próximas décadas, com o agravamento das mudanças climáticas. “Os cenários futuros indicam intensificação dos vetores de mudança e consequente perda de biodiversidade e qualidade ambiental, com destaque para as mudanças climáticas e seus efeitos cumulativos sobre a zona marinho-costeira”, escrevem os pesquisadores no diagnóstico. “Tais cenários sinalizam para a necessidade de ações urgentes, estruturantes e duradouras para a promoção de um oceano próspero, efetivamente protegido e resiliente e utilizado de forma mais sustentável e equitativa.”

O caranguejo-uçá é uma das principais fontes de renda e alimento para os pescadores e catadores da Reserva Extrativista de Cassurubá, em Caravelas, no sul da Bahia, que abriga um grande e saudável ecossistema manguezal – Foto: Herton Escobar/USP Imagens 

Amazônia Azul

Amazônia Azul é um termo cunhado pela Marinha do Brasil e adotado por parte da comunidade científica para se referir à área marítima do País — que seria comparável à floresta amazônica em termos de extensão, biodiversidade e recursos minerais e biológicos, por exemplo. Os limites adotados na elaboração do diagnóstico — totalizando 5,7 milhões de km2 — incluem duas grandes áreas que o Brasil pleiteia junto à Organização das Nações Unidas (ONU) que sejam reconhecidas como uma extensão de sua plataforma continental, o que garantiria ao País jurisdição sobre elas.

Esses pleitos ainda estão em análise pela Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da ONU, mas os pesquisadores consideraram justificado incluir essas áreas desde já como parte da Amazônia Azul, em acordo com as informações oficiais adotadas recentemente pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm), que deu apoio à elaboração do relatório.

“A princípio não há grandes riscos de o Brasil não ter essa área reconhecida como nossa”, avaliou Turra, destacando que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já trabalha, também, com esse novo mapa. “Pode demorar um pouco, mas, em breve, eu espero que a gente vá ter isso oficializado [pela ONU]”, concluiu o professor.

Além de Turra, assinam o Sumário para Tomadores de Decisão, pela USP, Áurea Ciotti, professora do Centro de Biologia Marinha (Cebimar); Eduardo Siegle, professor do IO; Luciana Xavier, pós-doutoranda do IO; e Marina Dale, ex-bolsista do IO e estagiária do Instituto de Biociências (IB).

A publicação contou com o suporte de uma emenda parlamentar do então deputado federal Rodrigo Agostinho (hoje presidente do Ibama) e apoio da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Instituto Serrapilheira e do Programa Biota/Fapesp, além das instituições já citadas acima.

A ilha de Trindade, a 1.200 km da costa do Espírito Santo, é um dos pontos mais isolados da chamada Amazônia Azul, que representa as áreas marinhas do Brasil – Foto: JL Gasparini/Nupem UFRJ

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