Fenômenos de pequena escala impactam circulação oceânica

Fonte: Folha SP

Fenômenos oceânicos pouco compreendidos são fundamentais para prever efeitos do aquecimento global

Mas o que é, exatamente, esse fenômeno? E por que é crucial compreender interações de pequena escala para prever seus reais impactos?


Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

A AMOC é um padrão de circulação oceânica associada à formação de águas profundas na região do mar do Labrador e dos mares nórdicos, nas proximidades da Groenlândia. Devido à perda de calor para a atmosfera em altas latitudes, as águas na superfície do oceano esfriam e, consequentemente, tornam-se pesadas e afundam.

Em altas profundidades, essas águas se deslocam para o sul até a região da convergência Antártica. Em seu trajeto, as águas profundas retornam vagarosamente à superfície devido à ação combinada de fortes ventos no oceano Austral (também chamado oceano Antártico) e à sua mistura com águas mais quentes que ocupam as regiões superiores da coluna de água nos trópicos e subtrópicos.

Cerca de 15 milhões de metros cúbicos de água afundam por segundo na região da Groenlândia, o equivalente a 75 vezes a vazão média do rio Amazonas. Esse volume de água mais fria que submerge e eventualmente se desloca para o sul é suprido por águas superficiais quentes, recém-ressurgidas, que são transportadas desde o Atlântico Sul até o Atlântico Norte. Por ser inter-hemisférica e carregar uma quantidade colossal de calor, a AMOC está intimamente ligada ao clima global.

A possibilidade de um colapso do ramo superior da AMOC não é exatamente uma novidade. Graças ao aquecimento do planeta, o gelo continental na Groenlândia vem derretendo e chega ao oceano como água doce. Por isso as águas superficiais no mar do Labrador e nos mares nórdicos estão se tornando menos salinas e, consequentemente, mais leves, o que dificulta seu afundamento e enfraquece a AMOC.

O que mais saltou aos olhos da mídia foi a divergência desse estudo em relação ao último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), publicado em 2021, no qual medições diretas no Atlântico Norte sugeriam um pequeno enfraquecimento da AMOC nas últimas décadas. Baseado nesses dados e em projeções climáticas feitas com modelos globais, o IPCC concluiu ser improvável um colapso da AMOC até o final do século. Apesar dos avanços no entendimento da AMOC e na simulação do clima global, essas projeções ainda são bastante incertas.

Imagine escrever seu nome num caderno de caligrafia com um pincel de quatro polegadas, que é aquele com que se pinta uma parede. Você pode até se esforçar, mas dificilmente conseguirá deixar o seu autógrafo nas linhas do caderno: sua ferramenta não tem resolução suficiente para resolver os detalhes caligráficos. Essa limitação serve de analogia para a raiz das incertezas em projeções climáticas de longo termo.

Modelos climáticos globais são uma combinação de equações matemáticas que governam a evolução dos fluidos, como água e ar, e dados observacionais. Tais modelos dividem a Terra em uma malha quadriculada com determinado espaçamento espacial. Executados em supercomputadores, nessa malha global eles simulam as grandezas físicas, como temperatura.

O tamanho dos fenômenos representados é limitado pelo espaçamento da malha, que por sua vez é determinado pelo atual poder computacional disponível. As projeções climáticas analisadas pelo IPCC têm resolução espacial de cerca de 100 quilômetros, suficiente para representar com certo detalhe fenômenos como a AMOC, que abrangem dezenas de milhares de quilômetros.

O desafio é que o oceano, assim como a atmosfera, é um fluido turbulento. Isso significa que existem interações entre fenômenos de diferentes tamanhos. Na prática, a evolução de fenômenos planetários, como a AMOC, é influenciada, talvez até controlada, por fenômenos de pequena escala, como frentes, instabilidades e ondas na superfície e no interior do oceano.

Com escala espacial de alguns metros a dezenas de quilômetros, esses fenômenos estão longe de ser capturados por modelos globais. Seguindo projeções da Lei de Moore, que grosso modo prevê a duplicação da capacidade computacional a cada dois anos, a inabilidade dos modelos para capturar esses fenômenos será realidade por muitas décadas.

Embora as projeções climáticas globais não tenham resolução suficiente para capturar explicitamente frentes, ondas e instabilidades, os efeitos desses fenômenos na evolução da circulação oceânica de grande escala e do clima global precisam, de alguma forma, ser levados em conta. No linguajar científico, os modelos implementam parametrizações, ou seja, fórmulas que tentam capturar os efeitos das pequenas escalas na evolução dos fenômenos de grande escala. Área ativa de pesquisa, o desenvolvimento de parametrizações de fenômenos de pequena escala oceânica requer pesquisa básica sobre mecanismos físicos ainda muito pouco compreendidos.

Essas pesquisas, que passam ao largo na mídia, são fundamentais para melhorar a acurácia das projeções do clima sob influência do aquecimento global e melhor prever o enfraquecimento da AMOC e o timing de seu eventual colapso.

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César B. Rocha é doutor em oceanografia física pela Universidade da California San Diego (EUA) e professor na USP.

 

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